sexta-feira, 13 de junho de 2008

UFBA / UFRB – 2007 –

A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.

Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.

Então Fabiano resolveu matá-la.

[…]

Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:

— Vão bulir com a Baleia?

[…]

Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.

Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinha Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou -se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.

Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de

Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.

[…]

Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade.

Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de

ramagens.

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão.

Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo

severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse

esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 74. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 85-86. Sobre o fragmento, contextualizado na obra, é correto afirmar:

(01) O primeiro e o segundo parágrafos contêm argumentos que justificam a decisão a ser tomada em relação a Baleia.

(02) Fabiano demonstra cuidados com Baleia, apesar de ser o seu algoz.

(04) O comportamento de sinha Vitória caracteriza-a como a mãe protetora, zelosa do bem-estar de seus filhos.

(08) O poder de decisão do chefe de família no ambiente rural fica evidente no texto.

(16) Sinha Vitória, ao aceitar passivamente a decisão do marido no que se refere a Baleia, demonstra ser indiferente ao animal e preocupar-se exclusivamente com seus filhos.

(32) A decisão de matar Baleia deixa patente o temperamento agressivo de Fabiano.

(64) A palavra “Mas”, no último parágrafo, antecede uma explicação do conflito entre razão e emoção vivido por sinha Vitória.

UFBA 2006

Os meninos sumiam-se numa curva do caminho. Fabiano adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a disposição deles, deixar que andassem à vontade. Sinha Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu espírito.

E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista. Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada. Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma nuvem que, vista de perto, escondia o patrão, o soldado amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos, duros como cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou não caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. […] Por que haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos?

Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.

–– O mundo é grande.

Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande –– e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu sinha Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas sinha Vitória renovou a pergunta –– e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos quando crescessem.

–– Vaquejar, opinou Fabiano.

Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinhos, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata. Então eles eram bois para morrer tristes por falta de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 71. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 120-122. A análise do fragmento, contextualizado no romance Vidas Secas, permite afirmar:

(01) Fabiano considera necessária a imersão das crianças no mundo convencional para apreendê-lo e, assim, libertá-las das condições socioculturais vividas.

(02) Sinha Vitória não se submete às expectativas sociais dominantes, contudo vislumbra um retorno às trivialidades da sua vida social da infância.

(04) O conjunto de personagens da trama simboliza, alegoricamente, os heróicos seres que sonham em reformar a sociedade agrária brasileira à custa da luta armada.

(08) Fabiano e sinha Vitória configuram um tipo de ser que vive reiterando ações, sem nada acrescentar a seu processo de crescimento humano.

(16) Fabiano constitui uma metáfora de ser humano derrotado, que sofre as conseqüências das estruturas vigentes e não consegue impor seus pontos de vista.

(32) A narrativa como um todo retrata um espaço em que a imutabilidade social e o abismo entre povo e governo são incontestáveis.

(64) A interação entre humanos e inumanos na narrativa explica a descontinuidade das ações narradas.

UFBA 2005

Recordou-se do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca, longe. Num dia de apuro recorrera ao porco magro que não queria engordar no chiqueiro e estava reservado às despesas do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na cidade. Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido: não compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que, para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços de carne. O agente se aborrecera, insultara-o e Fabiano se encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não entendia de imposto.

Um bruto, está percebendo?

Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de couro na mão, o espinhaço curvo:

Quem foi que disse que eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.

Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais porcos. Era perigoso criá-los.

[…]

Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam. Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que suportasse tanta coisa.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 71. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. p. 94-96. O fragmento, contextualizado na obra, apresenta

(01) as contradições de um poder público descumpridor do seu papel social.

(02) a ação deformadora do ser humano em face às transformações do sistema.

(04) um ser humano que oscila entre a resignação e a revolta, na luta pela sobrevivência.

(08) um ser sonhador, na busca obsessiva do sucesso, em um momento de confronto com as forças adversas que infestam os centros urbanos.

(16) um momento de colisão entre o protagonista e o antagonista, definidor de um final dramático para a família do retirante.

(32) duas personagens em confronto, que não abrem mão dos seus princípios e que simbolizam indivíduos isolados por causa de suas convicções arcaicas.

(64) a personagem Fabiano frustrada em suas expectativas e, por isso, praticando uma ação que contradiz sua postura habitual, a sua personalidade.

GABARITO:

2007 - 01,02,04,08,64

2006 - 08,16,32

2005 - 01,04,64

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Quem sou eu

Sou formada em Letras Vernáculas pela Universidade Católica do Salvador. Pós-graduada em Rh pela Faculdade Olga Metting. Minha paixão por redação me fez ensinar por muitos anos em algumas escolas e cursos pré-vestibulares(Colégio Resgate, Colégio Apoio, Colégio Drummond, Colégio Sigma ,Colégio Manoel Novaes). Prestei consultoria por alguns anos. A ideía do blog é compartilhar experiência com os meus amados alunos. Januza